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FUTEBOL PERNAMBUCANO

'Por que outras mulheres não apitam?', Deborah Cecília comemora marco na arbitragem feminina

Em entrevista ao Esportes DP, a primeira mulher a apitar uma final do campeonato estadual comentou os feitos da carreira, desafios e sonhos

postado em 02/05/2022 18:50 / atualizado em 02/05/2022 19:06

<i>(Foto: Rafael Vieira/FPF)</i>
Ser árbitro de futebol não é uma tarefa fácil no Brasil. E quando se trata de uma mulher na função, o desafio é ainda maior. Além de toda a responsabilidade que envolve a profissão de manter a ordem numa partida do esporte mais consumido no país, por muitas vezes também entra em campo o machismo, em um ambiente da sociedade onde a misoginia encontra raízes profundas e difíceis de serem combatidas.

Por isso, cada conquista feminina no futebol é um motivo de celebração. E no último sábado, aos 36 anos, a pernambucana Deborah Cecília entrou para a história como a primeira mulher a apitar uma final do estadual. Vencendo pressão de dirigentes, desrespeito e até ‘episódio de fúria’ contra ela. A cria do Janga, no Paulista, e única do estado com a chancela FIFA, contou ao Esportes DP sobre o mérito de realizar mais um sonho profissional, cada vez mais como referência para as outras mulheres.

Esportes DP: O que representa para você ter se tornado a primeira mulher a apitar uma final de Campeonato Pernambucano masculino?
"Foi mais um momento de conquista na carreira. A gente sempre gosta de pontuar positivamente. Apitar a final é um marco. Receber a chancela da FIFA é outro marco. São objetivos e sonhos traçados. Sou da turma de 2010 e tenho 12 anos de chão, de estrada. Hoje sou uma árbitra FIFA, mas jamais vou esquecer que comecei lá do chão, da base, apitando e passando diversas situações. Fizemos o que tinha que ser feito, o que estava na regra."

DP: Foi o evento mais marcante da sua carreira, ou foi quando você recebeu a chancela de árbitra FIFA?
"Essa é uma pergunta muito boa, porque são alegrias muito diferentes. Têm a coincidência porque são construções, reconhecimentos da carreira. Você constrói o caminho para chegar numa final, da mesma forma que tem a construção para chegar no escudo (FIFA). É o topo da arbitragem, fazer finais e chegar ao escudo da FIFA. Mas se manter é ainda mais difícil. Dar sequência nos campeonatos, permanecer por anos em alto nível, é sempre um desafio. A gente começa com o curso do Sindicato dos Árbitros, da Federação. Aí vai atuando em jogos de várzea, categorias de base, até receber indicação CBF e FIFA, e aí chegamos na categoria que todos sonham e se dedicam muito para alcançar."

DP: O que é mais difícil: apitar na várzea ou no profissional?
"Apitar na várzea é a escola da arbitragem. Antes de chegar no profissional, a gente apita campeonatos de bairro, jogos no interior, sub-15, sub-17, Recife Bom de Bola. Na várzea é sempre mais difícil. Se no estádio, jogo transmitido na TV, câmera de segurança e policiamento já é difícil, agora imagina na Várzea? É muito mais difícil. No profissional, a gente vê jogadores que não sabem a regra por completo, e na várzea é difícil ver algum jogador que conheça por completo. Para nós, aplicar a regra sempre foi mais difícil na várzea.

DP: Quando você foi escalada para apitar a final, houve reclamação pela direção do Náutico contra o seu nome. Essa pressão de dirigentes atrapalha?
"Eu já tinha ouvido, sim, esses rumores nas redes sociais. Mas como qualquer árbitro que já tem um nível profissional elevado, que tem uma rodagem boa, eu não deixo isso corromper a mente ou pesar de alguma forma. Não me deixo levar por esses tipos de comentários. Da mesma forma que um treinador vai deixar de escalar um jogador que a torcida não quer. Isso faz parte do futebol, as críticas vão existir. Até mesmo você estando certo, vai ter gente indo contra a regra, contra a tecnologia. Hoje é muito fácil de acessar, e sempre vai ter gente dizendo o contrário. Então, sou muito tranquila em relação a isso."

DP: Acha que há um exagero dessa pressão no seu caso por você ser mulher?
"Tem sim. Eu falo direto. Se você fizer rapidamente uma busca na internet, vai ver logo em Pernambuco. Temos quantas árbitras? Somos quatro mulheres assistentes, mas apitando jogo só eu, enquanto as outras banderam. Nós somos a minoria num quadro geral de cerca de 70 árbitros. E analisando direito, sempre seremos a minoria e a parte menos apoiada. Se eu tivesse errado o lance lá, hoje a imprensa iria cair em cima de um erro ainda mais pesado nas críticas. Por eu ser mulher, vai ser sempre três vezes mais. Mas já é um fato que estou acostumada. A gente se dedica a mais. Eu faço os mesmos testes físicos do lado dos. Se eu estava ali foi por merecimento. Do jeito que eles chegam, eu também chego."

DP: Acredita que falta incentivo para as mulheres chegarem à arbitragem?
"Sim. Inclusive, gostaria que as mulheres procurassem ocupar esses espaços também. Quando abre um curso de federação, e esse ano tem curso, o interesse da procura é muito pouco. Muitas param no teste físico e acabam desistindo. Eu reprovei quatro anos no teste físico masculino que me habilitaria para atuar em competição masculina. Tem os testes físicos específicos para o futebol feminino, mas praticamente aqui em Pernambuco, no Nordeste, não existem muitas competições em comparação com o masculino. A CBF agora está com algumas competições com bom calendário, inclusive com transmissão e tudo. É um leque a mais. Em Pernambuco é uma ou duas competições no ano que a Federação organiza. Se a gente não passar, se limita a ficar presa ao feminino e não atua. E com o índice do masculino, eu apito tudo."

"Não é questão da FPF. Ela abre vagas para que se tenha campeonatos femininos, ela estimula o espaço. O apoio de lá tem, e sempre terá para todas as modalidades, para o gênero feminino e o masculino. A luta é incansável. O que falta é a procura e o incentivo de fora, de patrocínio, que os times masculinos têm mas o feminino não tem. Faltam os patrocinadores apoiarem. Isso eu digo porque passei em todas as categorias e vi tudo de perto. A FPF faz o papel dela de incentivar torneios. Dia da Mulher, Campeonato Feminino, mas a rentabilidade pesa ainda mais."

DP: A crescente visibilidade do futebol feminino pode ajudar nesse sentido?
Ano passado eu cheguei a fazer jogo do como Corinthians x São Paulo no primeiro jogo da final no feminino. Hoje em dia o futebol feminino está ficando mais visível. Mas trazendo para o Nordeste, para Pernambuco, que é onde eu vivo, aqui o futebol feminino não caminha por falta de recursos. As meninas muitas vezes não têm nem chuteira e uma passagem para ir treinar."

DP: Acha que o teste físico do futebol masculino precisa ser adaptado para as árbitras mulheres?
"Eu não acho que tenha que rever. Se a gente quer igualdade, tem que ir atrás, tem que buscar. Eu não apitei a final sem ter mérito. Eu conquistei aquele espaço depois de doze anos esperando a oportunidade. Falta incentivo no futebol feminino em relação à arbitragem também. Somos minoria. Tem mulheres, mas a luta é sempre para que se possa ter mais. Porque a gente dá conta do trabalho. Sábado foi o que aconteceu. Mostrei que é possível. Eu não apitei? Por que outras mulheres não apitam?"

DP: Qual o seu maior sonho profissional?
"Eu faço fisioterapia, sou estudante e tenho o sonho de abrir o meu próprio consultório. Não sei se vou me dedicar para continuar sempre na arbitragem, porque tenho esse sonho de montar o meu consultório também. Mas tenho o sonho de poder participar de uma Copa do Mundo. É um sonho que todo árbitro tem, mas que poucos conseguem. O trabalho continua. A gente tem que continuar fazendo o que pode fazer melhor. Uma hora o meu ciclo vai acabar. Estou escrevendo o meu legado e vou deixar. Mas quero escrever de forma positiva, para que eu também seja exemplo para que outras também possam conseguir."

DP: Você tem esperança que aconteça no Qatar?
"Eu não conto muito com questão de chance. Todos tem. Basta você construir e continuar fazendo. Se tiver que ser ou não, vou continuar trabalhando para que no momento oportuno desfrutar das conquistas."

DP: Como você enxerga a diferença entre apitar no futebol masculino e no feminino?
"Futebol feminino é uma troca de chip. As meninas não vão com tanta força numa dividida. No masculino tem mais velocidade, massa muscular, força e explosão. As meninas também evoluíram muito no sistema tático e hoje não correm mais atrás da bola. Hoje o futebol feminino é profissional. Elas não têm mais a loucura de correr três quatro atrás da bola.

Mas o tratamento é diferente. A forma de falar com homem é diferente de falar com a mulher. E você vê a diferença de como o jogador fala conosco e como fala com um árbitro homem. A diferença é grande, tem que ter toda uma forma diferente de apitar as duas modalidades.

DP: Diferente em que sentido?
"Geralmente o jogador homem não grita conosco. Eles reclamam da forma que sabem reclamar. Já a mulher grita, é diferente. Os homens respeitam mais. Mas não faz diferença nenhuma. Eu lido muito bem, até por conta da experiência."

DP: Que lição você espera que o episódio de sábado, com o meia Jean Carlos, possa modificar na relação entre árbitras e jogadores?
"Independentemente de ser homem ou mulher, o fato ter acontecido seja por um desequilíbrio por conta da adrenalina ser elevada, a gente não pode agredir ou peitar alguém. Mesmo que naquele momento seja uma crise de fúria fora do normal. Não pode fazer e acontecer, e isso ficar impune. O futebol não aceita mais isso. Sendo homem ou mulher, o respeito pelo profissional tem que existir. Sendo certo ou errado, o primeiro princípio é o respeito de ambos os lados.

"Deveria ter uma punição mais severa nesse tipo de conduta. Eu deixo a reflexão de que se eu não tivesse dado três passos para trás, ou se eu tivesse baixado a cabeça em algum momento, eu iria cair. Os passos que dei foram para enxergar a minha visão adiante. Se eu não tenho feito isso, tinha levado uma peitada e caído para trás. Não é porque temos uma situação de crise que podemos partir para cima de outra pessoa."

DP: Também neste ano a gente viu um caso de agressão contra uma assistente no Espírito Santo. Você acredita que se houvesse uma punição à altura, esses episódios parariam de acontecer?
"Muito. Se houvesse, todos que pensassem em passar por um momento de fúria, nenhum teria essa coragem porque a punição seria severa, e até poderia acabar com a carreira. Fica manchado. É só refletir: você que é pai, que tem mãe, avó, se coloque no lugar dela. Queria que fizessem isso com ela? Alguém empurrar sua mãe, sua avó, sua esposa, sua filha? Fica a reflexão importante."

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