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Autistas do Sport ganham arquibancadas na batalha por inclusão no futebol

No Dia Mundial da Conscientização do Autismo, celebrado neste domingo (2), grupo de rubro-negros tenta dar mais visibilidade ao tema

postado em 02/04/2023 00:17 / atualizado em 02/04/2023 00:30

<i>(Foto: Sandy James/DP Foto)</i>
Assistir a um jogo do Sport na Ilha do Retiro lotada é desgastante para Daniel Pedrosa, de 10 anos. Empreitada comprovada pelo pai, Eduardo, 44, no retorno à casa onde moram, em Piedade, Jaboatão dos Guararapes. Mas nada que impeça a união entre pai e filho quando o Leão da Praça da Bandeira vai ao gramado. Daniel é daqueles torcedores ferrenhos, sempre apoiando o time de coração. 

O garoto tem um leve grau de autismo e, nos jogos com casa cheia, o programa tende a ser mais exaustivo em relação à maioria da torcida. Entrevistado  pelo Diario, o pai pede inclusão, que viria através de espaços mais apropriados nos estádios para portadores do TEA (Transtorno do Espectro Autista).

"Ele (Daniel) vai para os jogos desde os cinco anos, antes queria ficar nas sociais, hoje prefere arquibancada. Ele gosta de usar abafador por conta do barulho. Às vezes presta atenção, noutras fica com o celular. Mas já sabe reclamar e puxar o grito de guerra. Eu e Daniel nascemos no mesmo dia, data, mês e hora: uma segunda-feira, às 6h20 da manhã, em 9 de abril", disse Eduardo. 

Ainda não há registros exatos de quantos estão na condição neurológica. No entanto, segundo dados do CDC (Center of Diseases Control and Prevention, Centro de Controle e Prevenção de Doenças, no português), a cada 110 pessoas, uma delas é autista. O Dia Mundial da Conscientização do Autismo, celebrado neste domingo, 2 de abril, foi instituído em 2007 pela Organização das Nações Unidas (ONU). 
<i>(Foto: Sandu James/DP)</i>

Os autistas da Ilha

Em homenagem a Daniel, foi criado o grupo 'Autistas da Ilha', no intuito de dar mais visibilidade ao tema nos estádios de futebol. O projeto teve início em 2020 e hoje já conta com vários seguidores, especialmente na arquibancada frontal. 

"Temos um projeto enviado ao Conselho Deliberativo do clube para abraçar a causa social. Algumas propostas são a utilização de fogos silenciosos, ações de conscientização com distribuição de abafadores e protetores auriculares, lugares reservados nas cadeiras. Diversos clubes Brasil afora já fizeram isso”, cobra o pai.

Condição neurológica

A reportagem do Esportes DP também ouviu especialistas no assunto para destrinchar as dificuldades que a condição neurológica pode atrair nos estádios de futebol. “A situação dos Autistas da Ilha é bem desafiadora, dentro e fora das arquibancadas. Especialmente quando se trata de lidar com o barulho intenso durante os jogos no estádio e outras situações hiper-estimulantes”, falou o neuropediatra Gustavo Holanda. 

Nos três últimos jogos do Sport no ano, contra Santa Cruz, CRB e ABC, pela ordem, mais de 20 mil espectadores estiveram presentes na Ilha do Retiro. 
<i>(Foto: Sandy James/DP)</i>

"A depender do grau de autismo e da sensibilidade individual de cada pessoa, o barulho produzido por uma multidão de mais de 20 mil torcedores pode gerar incômodo e desregulação sensorial. Isso ocorre porque algumas pessoas com autismo possuem uma percepção sensorial diferente, tornando-as mais sensíveis a estímulos como sons (gritos da torcida e fogos de artifício), luzes (dos sinalizadores, refletores e flashes) e toques (no caso de arquibancadas lotadas)”, concluiu Gustavo.   

Já Kadu Lins, diretor geral do Instituto do Autismo, um centro de desenvolvimento motor e social para crianças e adolescentes autistas, destacou a importância da inclusão, não apenas no futebol, mas também em outras esferas do esporte. 

"A inclusão deve ser feita em todos os locais da sociedade, incluindo campos de futebol. Nas arquibancadas, várias ações poderiam ser feitas, como a distribuição dos abafadores ao identificar um autista, entrega de um crachá com o símbolo do clube e podendo escrever os dados pessoais da criança se ela se perder. Além de identificação de espaços prioritários, sendo estes de fácil acesso e de saída em caso de urgência, ingressos mais baratos ou gratuitos para estimular que esse público cada vez mais vá ao estádio", disse. 

Áreas inclusivas

Os estádios de futebol no Brasil evoluíram no que diz respeito à inclusão, mas ainda caminham lentamente. No futebol pernambucano, por exemplo, só o Náutico já reservou um espaço para autistas, área situada nas cadeiras dos Aflitos. Trata-se de uma parceria, sob demanda, com o Espaço Vida. 

Um dos projetos mais emblemáticos é o do Coritiba, que criou uma sala de acomodação sensorial para os portadores da condição neurológica e seus familiares no Couto Pereira. O clube levantou fundos após um leilão das camisas utilizadas no Campeonato Paranaense de 2022, levando o símbolo do autismo. Na ocasião, o Coxa conquistou o título sobre Maringá-PR, mas deixou como maior feito ter levantado a bandeira da causa.

Na Neo Química Arena, do Corinthians, há uma área para acomodar corintianos com TEA. Situada no setor Oeste Superior, a sala tem paredes e janelas com isolamento de som, bem como atividades especialmente desenvolvidas, tendo direito a entrada gratuita nas partidas e até ingressos com desconto de meia-entrada aos acompanhantes.
 
Veja a entrevista completa com o neuropediatra 
 
DP: Uma das dificuldades alegadas é o barulho e a maioria dos portadores costuma usar abafador. Num jogo com mais de 20 mil pessoas, a depender do grau de autismo, como isso pode afetar?

R: O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta a comunicação, a interação social e pode incluir hipersensibilidade sensorial. A situação dos Autistas da Ilha é bem desafiadora, dentro e fora das arquibancadas. Especialmente quando se trata de lidar com o barulho intenso durante os jogos no estádio e outras situações hiper-estimulantes.

A depender do grau de autismo e da sensibilidade individual de cada pessoa, o barulho produzido por uma multidão de mais de 20 mil torcedores pode gerar incômodo e desregulação sensorial. Isso ocorre porque algumas pessoas com autismo possuem uma percepção sensorial diferente, tornando-as mais sensíveis a estímulos como sons (gritos da torcida e fogos de artifício), luzes (dos sinalizadores, refletores e flashes) e toques (no caso de arquibancadas lotadas).

Nesses casos, o uso de abafadores de som pode ser uma solução eficaz para reduzir o desconforto e permitir que os torcedores autistas possam aproveitar o jogo. Esses dispositivos funcionam como protetores auriculares, diminuindo a intensidade do som ambiente, mas sem bloqueá-lo completamente.

DP: Alguns clubes já têm salas sensoriais e/ou áreas reservadas para pessoas autistas, mas o caso ainda tem pouca viabilidade no futebol brasileiro. O que você acha que pode melhorar em termos de inclusão nas arquibancadas? O Sport não tem uma área reservada para isso. No Corinthians, tem vários reservados, com o portador tendo entrada gratuita.

R: É verdade que a inclusão de pessoas com autismo e outras necessidades especiais ainda é um desafio para toda sociedade, e isso também se reflete nos eventos esportivos pelo Brasil. No entanto, é inspirador ver clubes como o Corinthians dando passos importantes nessa direção, com a criação de áreas reservadas e o acesso gratuito para os torcedores autistas.

Para melhorar a inclusão nas arquibancadas, especialmente em clubes como o Sport Clube do Recife, que tem a maior torcida do Nordeste, mas que ainda não possui áreas reservadas para parcelas tão especiais dos torcedores, algumas ações podem ser implementadas; conscientização e capacitação; promover campanhas de conscientização sobre o autismo e suas implicações para os torcedores, funcionários do clube e público em geral, buscando construir uma compreensão mais profunda das necessidades dessas pessoas. Além disso, oferecer treinamento e orientação aos funcionários do estádio para que possam auxiliar os torcedores autistas e suas famílias de forma adequada e empática. Criação de áreas reservadas, seguindo o exemplo do Corinthians, outros clubes podem criar áreas específicas e adaptadas para os torcedores autistas e suas famílias, garantindo um ambiente mais tranquilo e acolhedor durante os jogos. Isso pode incluir assentos com maior espaço, isolamento acústico e iluminação adequada.

Acesso facilitado: Além de garantir a entrada gratuita para os portadores de autismo, como já ocorre no Corinthians, é importante oferecer meios de acesso facilitado ao estádio, como vagas reservadas no estacionamento e entradas exclusivas, evitando aglomerações e desconforto.

Salas sensoriais: A implementação de salas sensoriais nos estádios, onde os torcedores autistas possam se refugiar em momentos de maior desconforto, pode ser uma iniciativa valiosa. Essas salas devem ser equipadas com elementos que ajudem a regular os estímulos sensoriais, como luzes suaves, materiais táteis e mobiliário confortável.

Parcerias com organizações especializadas: Estabelecer parcerias com organizações, como a própria torcida Autistas da Ilha, e com profissionais especializados em autismo e inclusão pode auxiliar na elaboração e implementação de estratégias eficazes para atender às necessidades dos torcedores autistas e promover a inclusão nas arquibancadas.

Quem sabe, dedicar um jogo do “Clássicos dos Clássicos” a essa torcida ou trazer aquele título sofrido do Nordestão? Ou sempre que jogar com o uniforme alternativo azul, lembrar dessa causa já “daria aquela moral”.

A adoção dessas medidas pode representar um grande avanço na promoção da inclusão no futebol brasileiro, permitindo que torcedores autistas e suas famílias possam desfrutar da experiência de apoiar seu time de coração de forma mais confortável e acolhedora. Mas enquanto, nem todas as sugestões possam ser implementadas, é importante que os pais e responsáveis estejam atentos às necessidades de seus filhos durante os jogos e busquem formas de proporcionar um ambiente mais acolhedor e seguro. Isso pode incluir a escolha de assentos mais afastados das áreas mais barulhentas, a realização de pausas para descanso em locais mais silenciosos ou mesmo o uso de outros recursos, como fones de ouvido com músicas calmantes.

DP: Um breve resumo sobre o TEA e como eles podem "sentir mais que os outros" durante uma partida de futebol (são 90 minutos, mas tem todo o deslocamento e etc) por vezes se distraindo, como alguns pais alegam.

R: O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição neurológica que afeta o desenvolvimento e a comunicação, trazendo comportamentos atípicos, impactando a interação social e a percepção sensorial dos indivíduos. Pessoas com autismo podem ser mais sensíveis a estímulos sensoriais, como sons, luzes e toques, fazendo com que "sintam mais que os outros".

Em uma partida de futebol, que dura os 90 minutos, além de seus intervalos e acréscimos, os autistas podem enfrentar desafios significativos devido a esses problemas sensoriais existentes em uma boa proporção deles. O trajeto até o estádio, o trânsito caótico do Recife nos dias em que vamos vencer o Náutico ou golear o Santa, as filas demoradas e o ambiente barulhento e agitado podem causar desconforto e desregulação sensorial. Isso pode levar a comportamentos de distração, como relatado por alguns pais, uma vez que o indivíduo com TEA pode estar tentando se afastar, se isolar ou lidar com os estímulos avassaladores.

É fundamental reconhecer e compreender as dificuldades enfrentadas pelos autistas nesses contextos, e buscar formas de tornar a experiência mais inclusiva e confortável para todos os torcedores, independentemente de suas necessidades especiais.

Dr. Gustavo Holanda, neuropediatra (CRM/PE 21131)
 

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